Inicialmente, é importante destacar (conforme já mencionado aqui neste blog em vários outros artigos) que há dois tipos de ciência praticados atualmente: a ciência humana e a ciência verdadeira. O que as diferencia significativamente é o tipo de raciocínio adotado. Enquanto a ciência humana (que remonta a Aristóteles) faz uso predominante de um raciocínio intuitivo/filosófico, mais aberto à especulação/interpretação, a ciência verdadeira (descoberta durante a Revolução Científica dos séculos 16 a 18) se utiliza do raciocínio formal (matemático), muito menos limitado e muito mais confiável, o qual deixa o mínimo espaço possível (ou nenhum) para a especulação/interpretação.[1-4] A ciência verdadeira é, portanto, muito mais eficiente em produzir conhecimento genuíno, mas a ciência humana também possui seu mérito. Neste artigo, estarei lidando, de forma geral, com a ciência humana (assim como em meu artigo anterior), haja vista ser esse o tipo de ciência praticada atualmente nas áreas de conhecimento que lidam com a questão das origens – tais como biologia evolutiva e geologia histórica.
A ciência de hoje possui uma visão essencialmente ateísta. Como diria Basil Willey: “A ciência deve ser provisoriamente ateísta, ou deixar de ser ela mesma.”[5] O que explica essa presente condição da ciência é a regra, supostamente necessária para o avanço científico, chamada naturalismo (ou materialismo) metodológico (NM). Stephen Meyer define essa norma da seguinte maneira: “...um princípio que especifica que os cientistas devem explicar todos os eventos através de causas materialísticas (não inteligentes), seja qual for a evidência.”[6] Por “causas materialísticas” entenda-se causas naturais (processos físicos, químicos, biológicos). Dentro desse contexto, qualquer cogitação de uma possível causa sobrenatural para explicar algum fenômeno natural, ainda que baseada em evidências do mundo natural, é descartada sob a acusação de ser metafísica ou teológica – em outras palavras, não científica.
Os defensores do princípio do NM argumentam que a proibição de invocar Deus ou alguma outra inteligência criativa em teorias científicas é bem fundamentada, nem um pouco arbitrária. Para eles, teorias de criação (Teoria do Design Inteligente – TDI – e Criacionismo Científico) não satisfazem padrões objetivos do método científico, conhecidos como critérios de demarcação. Não explicam por meio de causas naturais apenas, nem manifestam várias outras características de verdadeiras teorias científicas, tais como testabilidade, observabilidade e falseabilidade. Assim, diferente de teorias evolucionistas naturalísticas, teorias de criação seriam metodologicamente deficientes.[5]
Porém, há pelo menos três linhas de argumentação que demonstram a falibilidade dessa tentativa de imputar um caráter não científico à TDI,[5] a qual, por definição, “simplesmente diz que certas feições do Universo e dos seres vivos são mais bem explicadas por uma causa inteligente, ao invés de um processo não direcionado, como a seleção natural”.[7] Essa teoria não se preocupa em dizer quem seria essa causa inteligente (que pode ser Deus ou algum ser extraterrestre superevoluído, por exemplo). Apenas afirma que algumas evidências apontam para sua ação no Universo e nos seres vivos.
Em primeiro lugar, a maioria dos filósofos da ciência de hoje considera a questão “Quais métodos distinguem a ciência da não ciência?” como intratável e desinteressante. Eles têm aprendido com os sucessivos fracassos das tentativas de estabelecer critérios de demarcação, ao longo da história, capazes de distinguir com precisão a ciência da pseudociência, tendo chegado à conclusão de que a principal questão não é se uma teoria é ou não científica, mas se ela é ou não verdadeira ou garantida pela evidência. Como Martin Eger resume bem, “argumentos (ou critérios) de demarcação colapsaram. Filósofos da ciência não os consideram mais. Eles podem ainda desfrutar aceitação no mundo popular, mas esse é um mundo diferente”.[5]
Embora os argumentos de demarcação tenham caído em descrédito, de modo geral, para os filósofos da ciência, eles ainda são bastante valorizados por muitos cientistas. Em função disso, o segundo argumento tem por objetivo demonstrar a inaptidão de tais argumentos em desqualificar a TDI. Mais especificamente, é importante lidar com os seguintes critérios de demarcação, comumente utilizados como justificativa para atribuir o status de pseudociência à TDI: (a) explicações através de causas naturais apenas (é proibido recorrer a qualquer tipo de inteligência criativa), (b) observabilidade, (c) testabilidade, e (d) falseabilidade.[5]
Quanto ao item (a), que corresponde ao NM, é relevante atentarmos para o programa de pesquisa SETI (Busca por Inteligência Extraterrestre), o qual tem como missão explorar, entender e explicar a origem da vida no Universo e a evolução da inteligência.[8] Os cientistas desse instituto se dedicam a detectar sinais de vida inteligente em algum lugar do Universo. Para isso, buscam ondas de rádio especiais, diferentes das que são comumente detectadas por seus telescópios (produzidas no espaço por causas naturais), que lhes garantam estar diante de uma evidência clara de inteligência. Ou seja, para os cientistas do SETI é fundamental diferenciar fenômenos produzidos por causas naturais daqueles produzidos por uma mente inteligente. Logo, esse programa científico sozinho lança por terra a obrigatoriedade imposta pelo NM de uma teoria utilizar-se apenas de causas naturais em seu recurso explanatório para ser considerada científica.[9] Adicionalmente, a ciência forense, a história e a arqueologia, cujo caráter científico não é questionado, também postulam, assim como o SETI, a ação passada de seres inteligentes para explicar eventos ou objetos em estudo.[5]
Os itens (b) e (c) costumam estar interligados nas críticas feitas à TDI, já que se presume que o caráter inobservável de um agente inteligente o torna inacessível à investigação empírica, tornando a teoria impossível de ser testada.[5]
Porém, a realidade é que muitas áreas de conhecimento já consideradas científicas (por exemplo física, geologia, arqueologia, biologia) lidam rotineiramente com elementos inobserváveis (ex.: forças, átomos, eventos passados, feições geológicas da subsuperfície, estruturas biológicas moleculares), tendo que inferir sua existência a partir de elementos observáveis – ou seja, o teste é indireto. Até mesmo a teoria evolutiva apresenta elementos inobserváveis em sua estrutura, tais como: as formas de vida transicionais que ocupariam os nódulos da árvore da vida evolutiva de Darwin, mutações do passado, e eventos de rápida evolução (Pontualismo).[5]
O próprio Darwin argumentou que a inobservância de eventos/processos passados não significa que teorias sobre as origens sejam intestáveis. Ele afirmou: “Esta hipótese (descendência comum) deve ser testada... tentando ver se ela explica várias classes de fatos grandes e independentes; tais como a sucessão geológica dos seres orgânicos, sua distribuição no passado e no presente, e suas afinidades mútuas e homologias.” Para ele, essas teorias podem ser testadas indiretamente, avaliando seu poder explanatório com respeito a uma variedade de dados relevantes.[5]
Phillip Kitcher, que não é simpático às teorias de criação, reconheceu: “Mesmo postular um Criador que não pode ser observado não precisa ser menos científico do que postular partículas inobserváveis. O que importa é o caráter das propostas e os modos pelos quais elas são articuladas e defendidas.”[5]
O critério de falseabilidade (hipóteses científicas devem fazer previsões passíveis de refutação), item (d), é de difícil aplicação para qualquer teoria das origens. Mesmo que não haja dados que corroborem suas hipóteses preditivas de que certas evidências devem ser encontradas (ex.: os inúmeros fósseis intermediários previstos pela teoria da evolução), elas não podem ser refutadas, pois quase sempre haverá a possibilidade, ainda que mínima, de que tais dados surjam futuramente, já que a evidência e a compreensão do passado que temos são incompletas. Porém, a ciência deve ser capaz, afinal, trabalhando com hipóteses discordantes, e comparando-as com os dados, de identificar quais hipóteses não condizem com a realidade.[5, 10].
Por fim, como último argumento contra a ideia de que a TDI não é científica, apresenta-se o fato de que ela é metodologicamente equivalente à teoria da evolução (TE), podendo ambas ser classificadas como ciências históricas – as quais lidam com eventos passados únicos, irreprodutíveis em laboratório, buscando explicá-los a partir de feições da natureza do presente, o que as torna significativamente diferentes das ciências não históricas (ex.: física e química), que se preocupam, primariamente, em descobrir, classificar ou explicar regularidades (leis) e propriedades da natureza. A ideia principal desse argumento é que, haja vista a equivalência mencionada, torna-se impossível considerar como científica ou pseudocientífica apenas uma dessas teorias (TDI ou TE). Já que são metodologicamente equivalentes, e a ciência é definida por seus métodos, ou ambas são ciência ou pseudociência.[5]
É pertinente destacar ainda que o doutor em ecologia e biologia evolutiva Leonard Brand propõe que hipóteses úteis (testáveis) podem ser derivadas do Criacionismo Bíblico (que pode ser definido como uma cosmovisão ou filosofia que considera a Bíblia como uma fonte confiável de revelação da verdade). Ele afirma: “Não podemos testar diretamente se Deus esteve envolvido na história da Terra; porém, se Ele Se envolveu das maneiras descritas na Bíblia (criação e catástrofe geológica global), esses eventos deveriam ter deixado alguma evidência no mundo natural (por exemplo, limitada evidência para intermediários evolucionários e evidência pervasiva de ação catastrófica global).” E no decorrer de sua argumentação ele apresenta várias dessas hipóteses, demonstrando como elas têm apresentado considerável poder explanatório.[10]
Portanto, o que temos aqui, mais uma vez, é um exemplo claro de uma ciência histórica,[11] a qual, assim como a TDI, utiliza os mesmos recursos metodológicos e explicativos característicos da TE. Sim, o Criacionismo Científico tem um componente filosófico (suas crenças) que embasa suas hipóteses, mas o mesmo pode ser dito quanto ao Darwinismo (cujas hipóteses se baseiam na crença ateísta do NM) ou TDI (que admite tanto o teísmo quanto o ateísmo). Ademais, é fácil notar, depois de tudo o que foi exposto, que os critérios de demarcação já mencionados também falham em atribuir um caráter de pseudociência ao Criacionismo Científico, como ocorre com a TDI. Logo, a realidade é que, independentemente da cosmovisão adotada para o estudo das origens, seja ela naturalística ou teísta, é possível criar verdadeiras hipóteses científicas para estudar o passado da vida e do Universo. O que, afinal, realmente importa e deve ser levado em consideração é o poder explanatório revelado por cada uma dessas hipóteses quando confrontadas com os dados.
(David Ramos Pereira é geólogo e mestre em Geologia e Geoquímica pela UFPA)
Referências:
[1] A verdadeira e a falsa ciências. http://www.criacionismo.com.br/2016/07/a-verdadeira-e-falsa-ciencias.html; acessado em 20/8/2019.
[2] Ciência não é pesquisa comum. http://www.criacionismo.com.br/2016/09/ciencia-nao-e-pesquisa-comum.html; acessado em 20/8/2019.
[3] A descoberta da ciência. http://www.criacionismo.com.br/2017/03/a-descoberta-da-ciencia.html; acessado em 20/8/2019.
[4] Scientific Revolution. https://www.britannica.com/science/Scientific-Revolution; acessado em 20/8/2019.
[5] The Methodological Equivalence of Design and Descent. https://www.discovery.org/a/1696/; acessado em 18/8/2019.
[6] Denying the Signature: Methodological Naturalism and Materialism-of-the Gaps. https://evolutionnews.org/2015/11/denying_the_sig_4/; acessado em 17/8/2019.
[7] What is Intelligent Design. https://www.discovery.org/v/what-is-intelligent-design/; acessado em 18/9/2019.
[8] SETI Institute – Mission. https://www.seti.org/about-us/mission; acessado em 23/8/2019.
[9] Do You Like SETI? Fine, Then Let’s Dump Methodological Naturalism. https://evolutionnews.org/2014/09/do_you_like_set/; acessado em 20/8/2019.
[10] Brand, L. (2009). Faith, reason, and earth history: a paradigm of earth and biological origins by intelligent design. Andrews University Press, 332 p.
[11] It’s not science. https://creation.com/its-not-science; acessado em 25/8/2019.